Após meses de uma investigação aprofundada e da análise técnica de milhares de páginas de documentos, a Comissão Especial de Inquérito (CEI) “Fio da Navalha”, instaurada pela Câmara Municipal de Joanópolis, concluiu seus trabalhos e aprovou seu Relatório Final. A principal e mais grave conclusão do documento é a de que uma organização criminosa, estável e estruturada, operou a partir do núcleo da própria Prefeitura Municipal com o objetivo sistemático de fraudar licitações e desviar recursos públicos.

A investigação aponta o ex-Prefeito Adauto Batista de Oliveira como o líder e garantidor final do esquema, utilizando a autoridade de seu cargo para homologar e assegurar a execução das fraudes. Ao seu lado, o ex-Secretário de Administração e Finanças, Rodrigo Biagioni Furquim, é identificado como o principal operador e gerente dos múltiplos esquemas, exercendo domínio sobre o setor estratégico de licitações e contratos da Prefeitura.

O impacto financeiro das fraudes já comprovadas é devastador para um município com o orçamento de Joanópolis. A CEI conseguiu identificar e quantificar um prejuízo direto ao erário que atinge a cifra de R$ 1.353.281,48 e o prejuízo total dos casos já apontados é estimado em e o prejuízo total estimado em torno de R$ 3,46 milhões. Contudo, o próprio relatório adverte que este valor representa apenas a parte do dano que pôde ser calculada, funcionando como a “ponta do iceberg” de um esquema muito mais amplo.

As conclusões da Comissão não se baseiam em ilações, mas em uma robusta análise técnica e documental de dezenas de processos licitatórios, com foco nos pregões presenciais realizados entre os exercícios de 2021 e 2022. O documento de quase 400 páginas detalha o modus operandi da organização, as falhas institucionais que permitiram sua atuação e os múltiplos casos em que o dinheiro do cidadão foi desviado, culminando no indiciamento de dezenas de agentes públicos e empresários.

Os Pilares da Fraude: Como a Máquina Pública Foi Projetada para Corromper

A CEI concluiu que os esquemas de corrupção não foram falhas isoladas, mas o resultado de um “ecossistema administrativo deliberadamente fragilizado”. A organização criminosa construiu uma estrutura otimizada para a fraude, apoiada em quatro pilares que garantiram a execução e a blindagem dos atos ilícitos. O sistema não falhou por acidente; foi projetado para falhar em benefício dos criminosos.

O pilar fundamental foi a neutralização da fiscalização. O controle interno foi mantido como uma função “meramente simbólica”, chefiada por um cargo comissionado subordinado diretamente ao Prefeito. Essa escolha consciente, que ignorou alertas do Tribunal de Contas, eliminou qualquer supervisão independente e permitiu que os esquemas operassem livremente.

Com o controle neutralizado, a gestão optou pela modalidade de pregão presencial como a “porta de entrada para as fraudes”. A recusa em usar o método eletrônico — mais transparente e competitivo — foi uma escolha deliberada para restringir a concorrência, facilitar a formação de cartéis locais e dificultar a fiscalização.

O esquema precisava de um verniz de legalidade, papel cumprido pela Procuradoria Municipal. O relatório aponta que o procurador se limitava a “carimbar” processos com pareceres superficiais, ignorando sobrepreços e cláusulas restritivas. A investigação também indica sua “cooperação ativa” em ilegalidades e graves conflitos de interesse.

O pilar final foi a manutenção de um setor de licitações intencionalmente frágil. A equipe, reduzida e vulnerável a interferências políticas, foi mantida em um estado de “permanente fragilidade técnica”. Isso garantiu que os processos fraudulentos fossem executados sem resistência ou questionamentos internos.

O Rastro do Dinheiro: Casos Emblemáticos do Desvio de Recursos Públicos

Com a estrutura administrativa fragilizada por esses quatro pilares, a organização criminosa aplicou um modus operandi padronizado e replicável para desviar recursos em praticamente todas as áreas da Prefeitura. O mesmo método usado para fraudar a compra de um computador obsoleto foi aplicado para superfaturar o lanche das crianças. A investigação da CEI desvendou uma “central de fraudes” que operava com cotações simuladas, especificações técnicas direcionadas e pareceres jurídicos omissos. Os casos a seguir são apenas alguns exemplos práticos de como o dinheiro do cidadão de Joanópolis foi perdido.

Locação de Caçambas – O Aluguel Mais Caro que a Compra

Um dos casos mais emblemáticos de desperdício deliberado foi a contratação de aluguel de caçambas. A Prefeitura celebrou contratos anuais sucessivos com a empresa de Ednilson Ximenes (“Balinha”) por um valor que, ao longo do tempo, seria suficiente para comprar uma frota nova de equipamentos, que se tornariam patrimônio do município. A fraude foi viabilizada por cotações de preços simuladas e, de forma ainda mais grave, pela emissão de um “atestado de capacidade técnica” pela própria Prefeitura para favorecer a empresa, criando uma barreira que impedia a participação de outros concorrentes. A investigação comprovou um prejuízo consolidado e documentado de R$ 532.097,14.

Compra de Computadores – Lixo Eletrônico a Preço de Ouro

No que o relatório descreve como a compra de “lixo eletrônico a preço de ouro”, a Prefeitura adquiriu equipamentos de informática com especificações técnicas absurdas e obsoletas, como “computadores Frankenstein” que exigiam peças de 2012 em uma licitação de 2023. O esquema foi consumado com a desclassificação arbitrária de uma proposta R$ 235.000,00 mais barata para direcionar o contrato a uma empresa do cartel. A prova do conluio entre as empresas que participaram da cotação de preços foi irrefutável: a análise estatística demonstrou que a chance de as propostas terem sido elaboradas de forma independente era menor do que a chance de ganhar 7 vezes seguidas na mega-sena, constituindo uma prova matemática da fraude.

O Cartel da Merenda Escolar – Prejudicando a Alimentação das Crianças

A fraude não poupou nem a alimentação das crianças da rede municipal. O esquema começou com a revogação, sob pretextos frágeis, de uma licitação que havia sido vencida de forma legítima pela empresa Nutricionale, que era externa ao grupo. O relatório aponta este ato como a “confissão da intenção de controlar o resultado dos certames”. Nos processos seguintes, o cartel passou a utilizar barreiras documentais excessivas, como a exigência de laudos técnicos complexos, para eliminar a concorrência de supermercados locais, que comprovadamente ofereciam preços até 25% mais baixos. O esquema foi perpetuado por anos através de aditivos contratuais ilegais, que transformaram atas de registro de preços de um ano em contratos permanentes. Cada real desviado da merenda representa menos nutrição no prato de um aluno, traduzindo o dano financeiro em uma consequência humana e moral inaceitável.

O “Contrato da Família” e Símbolos da Improbidade

A audácia da organização chegou ao ponto de direcionar contratos para beneficiar diretamente familiares de seus membros. Contratos que somam mais de R$ 1 milhão para a compra de tablets e projetores foram direcionados para a empresa ACONDI’S, cujo sócio mantinha parceria de negócios com a irmã do então Secretário de Administração e Finanças, Rodrigo Furquim. A fraude envolveu sobrepreços que ultrapassaram 100% e 216%, respectivamente, em parte com recursos do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica (FUNDEB).

Até mesmo em contratações de grande visibilidade, o padrão de superfaturamento se repetiu. Foram adquiridas lixeiras de plástico por R$ 4.980,00 a unidade, quando o valor de mercado era de R$ 1.500,00. Os letreiros turísticos “Eu Amo Joanópolis” foram contratados com um sobrepreço de 216% quando comparado com contratações praticamente idênticas de outros Municípios.

A tabela abaixo resume alguns dos prejuízos que a CEI conseguiu quantificar de forma direta, ilustrando a escala do dano financeiro:

CasoDescrição Resumida da FraudePrejuízo Apurado (R$)
Locação de CaçambasAluguel por valor superior ao de aquisição532.097,14
Compra de Projetores (ACONDI’S)Direcionamento para empresa ligada a Secretário157.655,80
Letreiros “Eu Amo Joanópolis”Sobrepreço de 216% em licitação direcionada113.529,00
Aquisição de EletrodomésticosConluio e sobrepreço entre empresas do cartel84.942,13
Materiais HospitalaresDirecionamento e sobrepreço (dano potencial)67.973,01
Mobiliário EscolarDirecionamento com exigências absurdas e sobrepreço61.692,98
Compra de LixeirasSobrepreço de 230% com licitante único34.800,00
Total Comprovado 1.353.281,48

 

A Ponta do Iceberg: Investigação Revela Apenas Fração do Esquema

Apesar da profundidade e da gravidade dos fatos apurados, o Relatório Final da CEI Fio da Navalha é categórico ao afirmar que a investigação alcançou apenas uma fração do esquema de corrupção. O escopo dos trabalhos, por limitações de tempo e recursos, foi focado em um universo específico e restrito: principalmente os pregões presenciais realizados nos exercícios de 2021 e 2022.

Isso significa que um vasto volume de contratações públicas do período sequer passou pelo crivo da Comissão. Modalidades como cartas convites, tomadas de preço, concorrências e a grande maioria das dispensas de licitação ainda não foram auditadas, o que reforça a conclusão de que o prejuízo total ao erário pode ser exponencialmente maior do que o valor já quantificado.

O próprio relatório lista uma série de casos de alto impacto financeiro e com fortes indícios de irregularidades que a CEI identificou, mas não teve tempo de aprofundar. Entre eles, destacam-se os contratos de serviços mecânicos, o contrato de transporte escolar (no valor de R$ 2,7 milhões), a aquisição de softwares e sistemas de gestão, e irregularidades na compra de hortifrutigranjeiros. A narrativa que emerge é clara: o que foi encontrado é grave, mas o que não pôde ser investigado pode ser ainda pior.

Diante deste cenário, o relatório conclui que os achados representam apenas a “ponta do iceberg” e considera “absolutamente indispensável” a instauração de uma nova comissão de inquérito, a “CEI Fio da Navalha II”. A futura comissão teria como prioridade auditar os pregões dos exercícios de 2023 e 2024 e aprofundar a apuração dos casos que permaneceram em aberto, garantindo que nenhum foco de corrupção permaneça no escuro.

O Caminho da Justiça: Relatório Segue para o Ministério Público

Com a conclusão dos trabalhos do Poder Legislativo, a fase de investigação parlamentar se encerra e se inicia a fase de responsabilização judicial. O Relatório Final da CEI, acompanhado de todo o robusto conjunto de provas colhidas, foi formalmente encaminhado ao Ministério Público do Estado de São Paulo.

É fundamental que a população compreenda a separação de poderes e os próximos passos do processo. A CEI investigou e apontou os indícios de crimes e de atos de improbidade. Agora, cabe ao Ministério Público, como titular da ação penal, analisar as provas e, com base nelas, propor as devidas ações penais (por crimes como organização criminosa, fraude à licitação e falsidade ideológica) e as ações cíveis por ato de improbidade administrativa contra todos os agentes públicos e empresários indiciados.

Além do Ministério Público, cópias do relatório também serão enviadas a outros importantes órgãos de controle para que tomem as providências em suas respectivas áreas de competência:

  • Tribunal de Contas do Estado (TCE-SP): Para a devida análise das contas e a responsabilização administrativa dos gestores públicos envolvidos.
  • Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE): Para a investigação e punição dos múltiplos cartéis identificados, que atuaram nos setores de informática, merenda, recauchutagem e eventos.
  • Controladoria-Geral da União (CGU): Para que tome ciência da conduta do ex-prefeito Adauto Batista de Oliveira, indiciado como líder da organização criminosa e que, segundo o relatório, foi recentemente nomeado para um cargo comissionado de destaque no governo federal.

A gravidade dos fatos apurados sujeita os indiciados a severas consequências, caso sejam condenados pelo Poder Judiciário. As potenciais sanções demonstram que a corrupção pode ter um custo permanente para aqueles que traem a confiança pública. Na esfera criminal, as penas podem incluir a reclusão (prisão), que para muitos indiciados pode passar de uma década.

Já na esfera cível, por ato de improbidade administrativa, as punições incluem o ressarcimento integral do dano causado ao erário, a perda dos bens adquiridos ilicitamente, o pagamento de multa, a perda da função pública e, uma das mais importantes para a saúde da democracia, a suspensão dos direitos políticos, que pode impedir os condenados de concorrerem a eleições futuras ou voltem a ocupar outros cargos públicos.

O relatório final completo da CEI Fio da Navalha pode ser consultado no menu Transparência do site oficial do Poder Legislativo, em “Relatórios CEI”. A Câmara Municipal de Joanópolis, ao concluir e dar publicidade a este relatório, reafirma seu compromisso com a fiscalização rigorosa do dinheiro público e com a transparência. A investigação foi concluída. Agora, a palavra está com a Justiça.

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